segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Criando asas - William Santiago


 






     Bom, tomei bomba pra não estudar em Belo Horizonte, foi o que contei na crônica “Criando bunda”. Com essa decisão ganhei quatro anos de gorjeta, adiei a vida de adulto e permaneci na casa paterna. Mas não ia continuar “criando bunda”, tinha de começar era a criar asas. Aquela advertência da minha mãe antecipou o segundo tempo da minha vida.

     A partir daí, tinha que me mexer. Logo fui estudar datilografia, porta de entrada no mercado de trabalho na época. Curiosidade: meu instrutor foi o Vicente “Pachacha” Barbosa, figura popularíssima da Pitangui daquela época. A escola era na Praça do Jardim, oficialmente Praça Benedito Valadares, onde tinha funcionado a Papelaria Santa Terezinha ou A Escolar, ponto de encontro de estudantes. Já sabendo datilografia, passei a frequentar o Fórum. Fazia pequenos trabalhos de rua para meu pai no Cartório do Crime e , de vez em quando, usava meus conhecimentos de datilografia.
 
     Eu sonhava que ia ser mais rápido do que ele na máquina, pois usava os dez dedos, não olhava o teclado e seguia o método com afinco. Já ele se viravaa apenas com os dois indicadores. Mesmo assim, o “Dininho”, como era conhecido, mesmerizava o público dos júris ao arrancar faíscas na Remington Rand na hora dos depoimentos de réus e testemunhas.
O juiz ditava e ele transcrevia quase simultaneamente. Era uma atração a mais na estação anual de júris da Comarca de Pitangui, quando os seres humanos, mesmo os do interior, nos desdobramentos de suas tragédias pessoais, viravam espetáculo público.
   
     O contato diário no Fórum me fez sonhar secretamente em ser advogado. Queria transitar com pastas de processos pelos corredores e ser chamado de “doutor”. Os modelos eram muitos: Tasso Lacerda Machado, João Baptista Bicalho, João da Silveira Bicalho e o Promotor de Justiça, Laércio Rodrigues. De certa forma, queria que o papai ficasse orgulhoso de mim.

     O meu pai, com o passar dos meses, esqueceu sua mágoa por eu ter desprezado a vaga para Engenharia no Colégio Estadual de Belo Horizonte e começou a pensar em me preparar para ser seu substituto. Isso iria ficar evidente em 1968, último ano do 2º grau, quando não interferiu, mas tampouco encorajou meus preparativos para vestibular e a mudança para Belo Horizonte.

     Já os processos criminais que copiava a pedido dos advogados me fizeram conhecer um monte de dramas humanos. Alguns, editados, viraram contos ou crônicas anos mais tarde. Era o mundo real se abrindo para o rapazinho. Depois veio o contato com o Instituto Histórico de Pitangui, em processo de criação. A fundação seria oficialmente em 1969.

     O trabalho que me rendeu mais dinheiro foi copiar à máquina todo o acervo do Instituto Histórico, na letra difícil de um homem culto, calmo e educado, Sr. Achryses Gonçalves. Ele, ao me ajudar a decifrar sua letra, aproveitava para ensinar=me muita coisa da história de Pitangui, Minas, Brasil e do mundo. Esse contato me fez também conhecer de perto o promotor de Justiça, Laércio Rodrigues, o fundador do Instituto Histórico. Foi ele quem me aconselhou a fazer curso de Letras.
 
   Quando passei para o segundo grau na Escola de Comércio Profa. Maria Dolabela, depois de repetir a quarta série do Ginásio em 1965, passei a estudar à noite. De manhã, ia para o cartório e copiava processos para os advogados.  Quando não tinha o que fazer, lia. Havia livros escolares ultrapassados nos armários de meu pai e, num deles, encontrei Machado de Assis e nunca mais nos separamos. Comecei por Capitu. Era um texto para interpretação, umas duas páginas no máximo, mas para mim foi suficiente. Me apaixonei por ela quando Bentinho penteou seus cabelos e perdeu-se por instantes nos “olhos de cigana, oblíquos e dissimulados”. Aquela descrição me encantou para sempre. No livro de espanhol, encontrei mais combustível para refinar o gosto por idiomas. Tive, no Ginásio, Inglês, Francês e Latim. Começava a preparar-me para voar.

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