Fenômeno
inerente à própria condição humana a mentira, agora fake news, é praticada
desde que o mundo é mundo, suas origens se perdem nas dobras do tempo. Além de
fazer parte do cotidiano das pessoas, está inserida no contexto das narrativas
históricas, nos códigos penais, na literatura e no folclore de todos os povos.
Há
um cem número de definições sobre a mentira, a cargo dos estudiosos e
pesquisadores do folclore e da cultura popular. Entre estes, a do consagrado
folclorista Luis da Câmara Cascudo: “É a liberação dos limites da lógica e
participadas estórias mentirosas, pilhérias, anedotas, casos estupefacientes”.
Consta
inclusive nos relatos bíblicos, quando o apóstolo Pedro nega por três vezes
conhecer e ser próximo de Jesus.
Com
o nome “moderno” de fake news, a velha/nova mentira continua mexendo com o
cotidiano das pessoas e das sociedades em geral, desenvolvidas e
subdesenvolvidas. Agora, com o fenômeno da Internet, é incorporada nas redes
sociais, causando uma crescente onda de sensações, gerando uma onda de
desmentidos, de disse-me disse-me sem fim, inclusive frequentes processos
judiciais.
Desde os rincões do nosso imenso país, dos
campos às cidades, a mentira circula qual “necessidade” de muita gente, nas
feiras livres, nos salões dos antigos barbeiros aos salões de beleza das área
urbanas (grandes e pequenas), os contadores de estórias têm cadeira cativa,
alimentam expectativas e o imaginário popular.
Há
os que classificam a mentira com duas facetas: a “mentira verdadeira”, aquela
que calunia as pessoas causando-lhes danos morais, o que gera processos
judiciais, e a “mentira branca”, sem causar danos nem atingir a reputação de
ninguém. São estórias hilariantes, que aguçam o imaginário das pessoas,
contadas por figuras que fazem parte do folclore e da cultura oral das
comunidades.
A
mentira está presente não apenas na vida real, no cotidiano das pessoas, mas
também se presta como temas para as criações literárias dos grandes escritores,
principalmente no terreno da ficção, movimentando a cena teatral, o cinema e a
televisão. Os contadores de estórias, chamados “mentirosos profissionais”, têm
cadeira cativa nos programas de televisão.
Abarcando
os vários aspectos da questão, foi publicado, em 2001, inciativa da editora
Goiânia Kelpes, o livro sob o título Algumas
Pernas Curtas da Mentira, reunindo ensaios de escritores e pesquisadores de
destaque na cena cultural de Pernambuco: Mário Souto Maior, Manuel Correia de
Andrade, Renato Phaelante e Getúlio Araújo.
Cada
um registra e comenta os vários aspectos da mentira, sua repercussão desde as
narrativas históricas até casos envolvendo figurões da política e do folclore.
Na literatura de cordel, circulam centenas de folhetos contando desde fatos e
figuras históricas até projeções na cena ficcional, como o folheto sobre a
chegada de Lampião no Inferno.
O
escritor Mário Souto Maior afirma, no capítulo “a mentira na linguagem
popular”: “Na boca do povo – legendas escritas nos para-choques dos caminhões,
trovas, culinária, letras da música popular brasileira, crendices – a mentira
encontra sua guarida cotidiana como resultado da afirmativa de que é o povo
quem faz a língua de uma nação. Somente depois que o povo cria as palavras é
que os lexicógrafos arrumam-nas em estudos linguísticos e nas páginas dos
dicionários, passando, a partir de então, a pertencer à língua falada e escrita
de sua gente”.
O
autor citado admite que existindo em todo mundo, na totalidade das classes
sociais, branca ou verdadeira, a mentira, não podendo ser a exceção de uma
regra universal, também participa dessa linguagem popular, de ambas as
maneiras, contribuindo, assim, para seu enriquecimento.
O
campo da historiografia é dos mais férteis para a deturpação dos fatos e a
inserção de mentiras. O professor Manuel Correia de Andrade diz, no ensaio
sobre equívocos da história do Brasil, serem inúmeros os equívocos e omissões,
por parte de alguns historiadores, sobre fatos e acontecimentos que marcaram a
mudança de regime Império para a República.
Por
sua vez, o pesquisador Renato Phaelante comenta sobre a mentira na discografia
da MPB, um terreno fértil. Cita o poeta Mário Quintana para quem “a mentira é
uma verdade que se esqueceu de acontecer”. Pisa em outro terreno igualmente
fértil, para disseminação da mentida, que é a literatura de cordel.
Registra
alguns títulos como: “O homem que virou bode”, de Dila Soares; “O fantástico
caso do padre que morreu 136 vezes e ressuscitou”, de Abraão Batista; “O rapaz
que virou cachorro porque zombou do Padre Cícero”, de Jota Barros; “A moça que
dançou com Satanás no inferno”, de José Costa Leite; “O cavalo que defecou
dinheiro”, de José Martins de Athayde.
Phaelante
enumera várias letras musicais que têm como foco a mentira, inclusive o próprio
Gonzagão que, em parceria com Humberto Teixeira, gravou em 1949, a música
“Lorota Boa”: Dei uma carreira num cabra/que mexeu com a Maroquinha/começou na
Mata Grande/e acabou na Lagoinha/Corri mais de sete léguas/Carregado como eu
vinha/Pois trazia na cabeça/Um balaio cheio de galinha.
Esses
autores admitem ser muito complexo o mundo da mentira. Em suas nuancas
existemaquelas que são justificadas, quando se mente para ser agradável, por
mera educação. É o caso de alguém que afirma estar deliciosa a comida feita
pela amada, quando estava simplesmente intragável. Ou, mesmo quando se utiliza
a mentira para salvar a própria vida ou “tirar o pai da forca”, quer dizer, de
uma trapalhada.
(Manoel Neto Teixeira, jornalista e
historiador, membro da Academia de Letras de Garanhuns, é autor, dentre outras,
da obra Pinto Ferreira – Vida e Obra)
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