sexta-feira, 16 de abril de 2021

E TUDO COMEÇOU COM CLEÓPATRA - Gonzaga Mattos


 





     Às vezes, numa daquelas de não fazer nada, ligo a televisão e vou mudando de canal. Ora paro diante de uma cena inusitada, ora sou atraído para as recomendações dadas por alguém do tipo “faça o que falo, mas não faça o que faço”. Assim, numa displicência de quem não tem compromisso com o tempo, vou tocando a vida para não ser tocado dela. Sou homem do meu tempo e, sobretudo, dono de meu tempo. E, como o olho do dono é que engorda o gado, sigo dando sabores à minha vida: tangendo-a ao meu gosto, sem sair dos limites a que ela me impõe. Resumindo: danço conforme a música!

     Nesse rame-rame toco o barco e aprecio a paisagem. Num desses momentos televisivos vi uma das meninas do BBB, diante dos espelhos, se modificando. Exato: se modificando. Sou do tipo que isso era conhecido por make up. Hoje, pelo resultado final, entendo como camuflagem.

     Outra estratégia que está em moda é o uso de um aplicativo. Este é dez vezes melhor do que Antisardina, o segredo da beleza feminina. Já tem feirante pensando em aplicá-lo em maracujás de gaveta para transformá-lo com ares de pele de pêssego. Com o aplicativo “aplicado” chovem comentários do tipo “como você está linda”, “o tempo não passa para você” – forma bandida de enquadrar a amiga na turma da terceira idade.

     Diante disso pensei numa boa piada: a senhora, daquelas bem caridosas e atentas às questões sociais, teve um beribéri e foi parar no hospital. O peso da idade facilitou o aparente inesperado. Examinam aqui, examinam ali. E nada de sinal de vida. Nesses momentos de confabulações e cochichos em volta da indigitada, lá foi ela, de moto próprio, ter uma conversinha antes com São Pedro, que lhe encaminharia para onde sua vida pregressa lhe credenciava. Nesse bate-papo com dito porteiro do Céu, a recém-chegada alegou que ainda tinha muita coisa a resolver, tantos carentes necessitando de seu olhar piedoso e por aí adiante. Pediu que a medida fosse reconsiderada dado o seu excelente currículo à frente de obras meritórias. Lembrou-se daqueles que dependiam de suas beneficências.

As lágrimas e tantos serviços prestados às boas causas conseguiram comover o bom velhinho. Afinal, ninguém é santo por acaso.

- Tá bom! Você vai sair desse estado de quem já foi pro beleléu e logo, logo, você terá alta e vai para casa. Faça o que você tem que fazer e daqui cinco anos virá de mala e cuia.

Na UTI foi uma correria. Todos surpresos quando ela abriu os olhos e esboçou um sorriso. Teve até balões coloridos em sua saída do hospital.

Dias depois lá estava visitando todas as irmandades e grupos de chás onde estabeleciam planos de ajuda ao próximo. Foi recebida com confetes e serpentinas. Regalos para quem tem conta polpuda e coração mole.

     Ah, se eles soubessem o que passava pela cabecinha da “filantropa”, como era nominada pelo colunista social da cidade. Ao sair do hospital passou pela Caixa e viu saldo e aplicações. Chegou à casa e começou a fazer cálculos. Tanto para a Santa Casa, tanto para o Lar das Meninas e Guarda Mirim e assim foi marcando os valores na coluna apropriada. Na outra página estabeleceu os valores para uma volta ao mundo em transatlânticos. Por último, porém mais importante, a página com letras garrafais: MEU NOVO LEIAUTE. E aí colocou a maior parte do dinheiro aplicado. Não sem antes exclamar: - Nestes cinco anos minhas aplicações serão de botox e silicone!!!

Recauchutada e toda faceira com novos seios, bumbum revigorado e empinado, nariz aquilino e olhos de gata, confiante nas palavras de São Pedro, que lhe davam cinco anos a mais de vida, ajeitou os ombros, estufou o peito, levantou o queixo e saiu às ruas para o famoso “que vier e der”. Uma dezena de metros adiante foi atropelada, sem retorno. Subiu direto.

Com tanta gritaria e reclamações, na recepção daquele ambiente de paz celestial, foi imediatamente atendida:

- Mas, São Pedro! O senhor não disse que me daria mais cinco anos de vida e já estou aqui de volta?

Surpreso, o porteiro do Céu a olhou de alto a baixo e, pálido, exclamou: “Meeeniiina, não te reconheci!”

NR: Minha homenagem às caras lavadas.


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