sexta-feira, 16 de abril de 2021

A Noite, com Nostradamus - João Marques

 






    

      Noite, e Nostrad recolhido em um canto da sala. Sozinho, sentado numa cadeira antiga, com guardas de sustentação por todo o canto. Cenho mostrando amargura, e um ar de convencimento. Escuta os sons habituais de casa. Pouca gente. Não se importa. A desolação silenciosa, de sala à parte, fechada. Ninguém de casa entra ou passa na sala, era costume. O isolamento de sempre o deixa à vontade. Pensa, e pensa mais dessa vez. De cá, do seu tronco, observa os livros da estante. Que significavam mais? E se lembra que não havia terminado a leitura de Guerra e Paz... quantas vezes, havia tentado, em vão. Que importa, agora? Noite, tenebrosa noite. Os livros sem tempo. E sem tempo os livros da noite.

     O dia passado tinha sido normal. Não muito, considerando-se o encontro com um pastor protestante. Anuncia-lhe, o religioso, que o fim do mundo está próximo. Cita a Bíblia, as previsões antigas, o livro de João, e as perdições do mundo atual. O fim está próximo, aleluia! Nostrad escuta, atento. E, por solidariedade, diz que os sinais já não estão apenas no céu... Outra passagem digna de nota no dia foi a observação, que fez, de um político conhecido abraçando todo o mundo que ia encontrando. Próximas as eleições, o homem anda de mangas de camisa pela calçada movimentada. Para, abre os braços incontinente, e, sorrindo, cumprimenta todos, abraça, fala... Uma moça, sorridente também, entrega panfletos, onde está, também, retrato em mangas de camisa. Só alegria. Manhã e tarde, nada mais notório que pudesse quebrar a rotina. Apenas isso, esses exageros.

     A noite, Nostrad está noite, e, sentado e só, vai tendo pouco a pouco agravamento do que é. E é anoitecimento profundo. Nem saber do horário, do andamento do tempo, nada lhe interessa mais. E nem respirar a vida, a existência ali, com quadros de paisagem nas paredes, crianças brincando, de tonalidade azul. Mais tarde, percebe que foram todos dormir. Poucos. Permanece, sólido, em sua postura, dobrado na vida. Apaga a luz, alcançando o interruptor perto, sem se levantar. É todo ficada, e as horas passam... até escutar sons conhecidos, da madrugada. Sons por sons, não quer escutar mais. E desvia a atenção para o pensamento de que todos dormem. Longe, tudo está muito longe. Sente frêmitos, estacionado na cadeira. O mundo, pensa, não sabem, está estacionado na noite. Durmam! solta a exclamação. Sente fria a língua. Admite, hermético como nunca, que o mundo, agora, não é mais que a cadeira. E lhe parece prazeroso estar sentado ainda sobre a cadeira. Sobre a noite e a cadeira. Espera mais, terrível espera.

     Dormentemente, bole os sapatos. Estava ainda de sapatos, como chegara da rua. Tem um impulso à toa de querer tocar o interruptor. Mas não. A escuridão da noite está definida... Espera. Entra em divagações. Vida, vá ao diabo! Aposentadoria, vá ao diabo! Amigos, parentes, mortos, vão ao diabo! Há no espaço um estalido da cadeira, escuta, recompõe-se do desespero na escuridão da sala, decide-se pela calma, contemplar a noite que lhe resta ali. Levanta os olhos e divisa pequena claridade entrando pela greta da janela próxima. Espera, senta mais na cadeira o que não estivesse prostrado. Deixa cair os braços para os lados. A claridade vem, e a noite começa a ser debelada, ali, na sala, a sua vista. Incrível... Ah, é o sol, o sol de novo. E se levanta meio leso e entrevado. E, ao se erguer, a cadeira range, amanhecida e livre.


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