quarta-feira, 1 de setembro de 2021

AH, SE ESSA RUA FOSSE MINHA... - Luiz Gonzaga de Mattos


 







Se tem tipo de filme que brasileiro gosta é aquele que retrata a american way of life. Todo mundo sonha com aquelas casas de gramado verdinho e pedras uniformes e branquinhas na calçada. A admiração maior fica, porém, com a cerca viva bem aparada.

     Todos gostam desse cenário típico do estilo de vida americano. Como todos também sabem que por aqui não daria certo. Que o diga a Cidoca. A vizinhança é toda cheia de muros. Há daqueles caiados de branco, com vistosas pedras pretas reluzentes (assim tipo dálmata), de tijolinhos e os com reboco chapiscado. Cidoca nem repara no acabamento. Sua ojeriza é com a altura. Para ela, muro deveria ser de dois metros, no mínimo. Tem lá suas razões...

     Vamos a elas. Para isso precisamos saber um pouco mais sobre a Cidoca. Para os menos chegados é Aparecida. Adquirido um dedo de intimidade, é a Cida. Assim ela é conhecida na repartição, onde tem sua mesa sempre decorada com uma flor, colhida em seu jardim ou trazida por colegas. Alguns, certamente, enlevados pelos cabelos negros e a bem fornida retaguarda. Mas, qual o quê, a moça não era de galanteios. Dona Aparecida é “alta funcionária, da letra O”, como bem lembrou o Zequinha, estafeta de poucas letras, mas bom puxador de sambas e marchinhas. Certamente foi buscar no repertório do carnavalesco Blecaute a inspiração para justificar a austeridade de Cida.

     Ela não dava mole para a torcida. O motivo era o Claudionor. Bem apessoado e cheio de gentilezas na apresentação: Prazer. Claudionor, ao seu dispor! Encantado!
Aquele encantado foi um canto de sereia aos ouvidos de Aparecida. Dali em diante era uma atenção só ao cliente. E só a ele. Bastava o rapaz aparecer na porta e Aparecida saltava da cadeira e corria ao balcão para atendê-lo. No segundo ou terceiro dia abriu exceção no protocolo: - pode me chamar de Cida.
Sinal verde no farol. Claudionor encurtou caminho e acelerou para ser perder nos cabelos de Cida. Convite para o chope no final do expediente. Gelo quebrado e fazendo jus ao “Claudionor, ao seu dispor”, se dispôs a deixá-la em casa. – É caminho. Fique tranquila!

     Não mentia. Seguiu à letra o ensinamento: “todos os caminhos levam à Roma”. Afinal, vendo Cida, embalada num tailleur que destacava as linhas sinuosas do corpo, o que era mais uma curva no seu trajeto. Portou-se como um cavalheiro. Sabia que era preciso manhas para desfrutar dos prazeres das manhãs. Saiu como chegou; extremamente discreto.

      A descida rápida do carro e um beijo rápido na face da moça não passaram, todavia, despercebidos aos olhos das vizinhas das casas da frente. Aparecida nem notou as cortinas sendo levemente entreabertas ou as travessas das persianas se afastarem para os olhos curiosos de dona Leonor e dona Jandira.
A rua em que ela morava era bem tranquila. Quase nem passava carro por ali. As casas? Uma ou outra com jardim na frente. Com brincos de princesa e roseiras tratadas com carinho. Em algumas, janelas largas, com gatos sonolentos esparramados, na modorra ao sol. Um sono aparentemente tranquilo... de vez em quando, interrompido pelos latidos dos cachorros da vizinhança, correndo atrás de motoqueiros.
     Não fossem as bisbilhotices de Leonor e Jandira, Aparecida estaria no paraíso. Se colocava um shorts justinho, daqueles de saltar protuberâncias, despertava saliências em seus vizinhos. Situação para as patroas, enciumadas, soltarem frases, do tipo “Ah, essa sirigaita!... E você, vê se se enxerga”. Ou, então, aquela de mexer com os brios do “pouca sorte”: - nem olhe... você não tem mercadoria para entregar.
- Hoje vou fazer essas fofoqueiras babarem veneno, falou Cida para a sua própria imagem, diante do espelho, enquanto dava retoques na maquilagem. Em seguida jogou umas gotas de seu perfume favorito, recitando o que leu num folheto antigo da Coty: é o encanto. Sem este, a beleza é fria e não seduz. Era tiro e queda. Claudionor ficava inebriado. E recitava poesias para a Cidoca. Nada melhor do que a intimidade para abreviar nomes. Para ela, ele era, simplesmente, Nonô.
Ao sair de casa de braço dado com seu admirador, ela já olhou, disfarçadamente, para a casa das vizinhas. Na caçapa! Sem bater nas beiradas.
Leonor e Jandira viram os dois embarcarem e correram para o fundo das casas. Sem esperar o carro virar a esquina.

     Oi... Oi... Jandira tinha até uns tijolos providenciais para poder colocar a cabeça acima do muro. Mais alta, Leonor numa pose clássica: os braços dobrados, jogados sobre o muro, com um Continental, sem filtro, entre os dedos..
A postos, começaram a bater a língua nos dentes: – Você viu só a pose da sirigaita! Jeitoso ele, né. Um tipão... Aquele carro deve custar uma nota preta. Nesse tom foram desfiando o rosário de mexericos. Passada as considerações sobre o decote da vizinha, o carro de Nonô, o vidro trincado de uma das janelas da Aparecida, a conversa seguiu o roteiro tradicional. Acabou sobrando para o Facinho, como Leonor chamava o Bonifácio, e para o Bem, apelido carinhoso dado por Jandira, ao Oscar nos primeiros anos de matrimônio. A vida mudou, Oscar passou a dedicar seus finais de semana ao futebol (na TV e nas conversas no bar do Rubão) mas ela não tinha mais como mudar. Afinal, ele também a chamava de Bem. E assim iam tocando a vida com Bem para lá. Bem para cá.

     O tempo passou. Já sem disposição para subir nos tijolos, Jandira pediu para o Bem abrir uma passagem no final do muro. E as amigas transferiram sua Boca Maldita particular para debaixo do caramanchão, construído pelo Facinho. Com elas, seus novelos de lã para tricotar.. Já não tinham mais cenas para suas conversas e se dedicaram ao tricô. Facinho e o Bem resolveram jogar dominó nos finais de tarde.
Enfim, tudo mudou! Nonô e Cidoca se casaram e hoje ele está lá, virando as pedrinhas de madrepérola nos finais de tarde, e Cidoca levando seus tapetes de ponto cruz para o caramanchão. Nem olha com maus olhos o velho muro.
Mas, entre um ponto e outro, as fofocas voltaram. O alvo agora é a Tere... Moradora nova da rua e que não tolera as vizinhas metendo o bedelho em sua vida, nos finais de tarde, sob a sombra do caramanchão.


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