Se tem tipo de filme que brasileiro gosta é aquele que
retrata a american way of life. Todo mundo sonha com aquelas casas de gramado
verdinho e pedras uniformes e branquinhas na calçada. A admiração maior fica,
porém, com a cerca viva bem aparada.
Todos gostam
desse cenário típico do estilo de vida americano. Como todos também sabem que
por aqui não daria certo. Que o diga a Cidoca. A vizinhança é toda cheia de
muros. Há daqueles caiados de branco, com vistosas pedras pretas reluzentes
(assim tipo dálmata), de tijolinhos e os com reboco chapiscado. Cidoca nem
repara no acabamento. Sua ojeriza é com a altura. Para ela, muro deveria ser de
dois metros, no mínimo. Tem lá suas razões...
Vamos a elas.
Para isso precisamos saber um pouco mais sobre a Cidoca. Para os menos chegados
é Aparecida. Adquirido um dedo de intimidade, é a Cida. Assim ela é conhecida
na repartição, onde tem sua mesa sempre decorada com uma flor, colhida em seu
jardim ou trazida por colegas. Alguns, certamente, enlevados pelos cabelos
negros e a bem fornida retaguarda. Mas, qual o quê, a moça não era de
galanteios. Dona Aparecida é “alta funcionária, da letra O”, como bem lembrou o
Zequinha, estafeta de poucas letras, mas bom puxador de sambas e marchinhas.
Certamente foi buscar no repertório do carnavalesco Blecaute a inspiração para
justificar a austeridade de Cida.
Ela não dava
mole para a torcida. O motivo era o Claudionor. Bem apessoado e cheio de
gentilezas na apresentação: Prazer. Claudionor, ao seu dispor! Encantado!
Aquele encantado foi um canto de sereia aos ouvidos de Aparecida. Dali em
diante era uma atenção só ao cliente. E só a ele. Bastava o rapaz aparecer na
porta e Aparecida saltava da cadeira e corria ao balcão para atendê-lo. No
segundo ou terceiro dia abriu exceção no protocolo: - pode me chamar de Cida.
Sinal verde no farol. Claudionor encurtou caminho e acelerou para ser perder
nos cabelos de Cida. Convite para o chope no final do expediente. Gelo quebrado
e fazendo jus ao “Claudionor, ao seu dispor”, se dispôs a deixá-la em casa. – É
caminho. Fique tranquila!
Não mentia.
Seguiu à letra o ensinamento: “todos os caminhos levam à Roma”. Afinal, vendo
Cida, embalada num tailleur que destacava as linhas sinuosas do corpo, o que
era mais uma curva no seu trajeto. Portou-se como um cavalheiro. Sabia que era
preciso manhas para desfrutar dos prazeres das manhãs. Saiu como chegou;
extremamente discreto.
A descida rápida do carro e um beijo
rápido na face da moça não passaram, todavia, despercebidos aos olhos das
vizinhas das casas da frente. Aparecida nem notou as cortinas sendo levemente
entreabertas ou as travessas das persianas se afastarem para os olhos curiosos
de dona Leonor e dona Jandira.
A rua em que ela morava era bem tranquila. Quase nem passava carro por ali. As
casas? Uma ou outra com jardim na frente. Com brincos de princesa e roseiras
tratadas com carinho. Em algumas, janelas largas, com gatos sonolentos
esparramados, na modorra ao sol. Um sono aparentemente tranquilo... de vez em
quando, interrompido pelos latidos dos cachorros da vizinhança, correndo atrás
de motoqueiros.
Não fossem as bisbilhotices de
Leonor e Jandira, Aparecida estaria no paraíso. Se colocava um shorts justinho,
daqueles de saltar protuberâncias, despertava saliências em seus vizinhos.
Situação para as patroas, enciumadas, soltarem frases, do tipo “Ah, essa
sirigaita!... E você, vê se se enxerga”. Ou, então, aquela de mexer com os
brios do “pouca sorte”: - nem olhe... você não tem mercadoria para entregar.
- Hoje vou fazer essas fofoqueiras babarem veneno, falou Cida para a sua
própria imagem, diante do espelho, enquanto dava retoques na maquilagem. Em
seguida jogou umas gotas de seu perfume favorito, recitando o que leu num
folheto antigo da Coty: é o encanto. Sem este, a beleza é fria e não seduz. Era
tiro e queda. Claudionor ficava inebriado. E recitava poesias para a Cidoca.
Nada melhor do que a intimidade para abreviar nomes. Para ela, ele era,
simplesmente, Nonô.
Ao sair de casa de braço dado com seu admirador, ela já olhou, disfarçadamente,
para a casa das vizinhas. Na caçapa! Sem bater nas beiradas.
Leonor e Jandira viram os dois embarcarem e correram para o fundo das casas.
Sem esperar o carro virar a esquina.
Oi... Oi...
Jandira tinha até uns tijolos providenciais para poder colocar a cabeça acima
do muro. Mais alta, Leonor numa pose clássica: os braços dobrados, jogados
sobre o muro, com um Continental, sem filtro, entre os dedos..
A postos, começaram a bater a língua nos dentes: – Você viu só a pose da
sirigaita! Jeitoso ele, né. Um tipão... Aquele carro deve custar uma nota
preta. Nesse tom foram desfiando o rosário de mexericos. Passada as
considerações sobre o decote da vizinha, o carro de Nonô, o vidro trincado de
uma das janelas da Aparecida, a conversa seguiu o roteiro tradicional. Acabou sobrando
para o Facinho, como Leonor chamava o Bonifácio, e para o Bem, apelido
carinhoso dado por Jandira, ao Oscar nos primeiros anos de matrimônio. A vida
mudou, Oscar passou a dedicar seus finais de semana ao futebol (na TV e nas
conversas no bar do Rubão) mas ela não tinha mais como mudar. Afinal, ele
também a chamava de Bem. E assim iam tocando a vida com Bem para lá. Bem para
cá.
O tempo
passou. Já sem disposição para subir nos tijolos, Jandira pediu para o Bem
abrir uma passagem no final do muro. E as amigas transferiram sua Boca Maldita
particular para debaixo do caramanchão, construído pelo Facinho. Com elas, seus
novelos de lã para tricotar.. Já não tinham mais cenas para suas conversas e se
dedicaram ao tricô. Facinho e o Bem resolveram jogar dominó nos finais de
tarde.
Enfim, tudo mudou! Nonô e Cidoca se casaram e hoje ele está lá, virando as
pedrinhas de madrepérola nos finais de tarde, e Cidoca levando seus tapetes de
ponto cruz para o caramanchão. Nem olha com maus olhos o velho muro.
Mas, entre um ponto e outro, as fofocas voltaram. O alvo agora é a Tere...
Moradora nova da rua e que não tolera as vizinhas metendo o bedelho em sua
vida, nos finais de tarde, sob a sombra do caramanchão.
Sem comentários:
Enviar um comentário