quarta-feira, 6 de outubro de 2021

A DIVINA COMÉDIA E OS EMBATES POLITICOS - Manoel Neto


 








A Divina Comédia, de Dante Alighiere, clássico da literatura universal, concebida no século XIV, com dimensões nos campos histórico, mitológico, filosófico, religioso e político, compõe-se de três volumes versando sobre Inferno, Purgatório e Paraíso.

A obra abarca todos os sentimentos humanos – bons e maus -, com repercussão na vida real, aqui na terra, e além túmulo.

Nascido em Florença, em 1265, então cidade-estado republicana, com autonomia política e econômica, entreposto comercial e centro cultural da Itália, era berço de poetas e artistas.

Dante foi envolvido desde cedo pelos embates políticos de sua terra, assolada pelas disputas entre as correntes do Partido dos Guelfos e o Partido dos Gibelinos. A ponto de ter sido impelido a deixar definitivamente sua terra, passando a viver no exílio em Verona, Bolonha e Ravena.

O poema é narrado na primeira pessoa (o próprio autor), qual peregrino representante do homem medieval, espremido entre a cultura clássica e a tradição cristã, em busca de excelência moral e espiritual.

Escrita no italiano vulgar, da época, baseado no dialeto toscano, próximo ao italiano atual, o autor narra a própria caminhada, com paradas e observações das cenas que ocorrem nas três estações, classificadas pelo próprio texto bíblico como Inferno, Purgatório e Paraíso.

Levado pela mão do também poeta Virgílio, autor do clássico A Eneida, Dante conhece o Inferno e o Purgatório, onde encontra os pecadores que lá se encontram, para depois chegar ao Paraíso, onde abraçaria sua musa Beatriz.

Enquanto o Inferno responderia pela depressão do Mar Morto, onde todas as águas convergem, o Purgatório e o Paraíso são círculos concêntricos que, juntos, responderiam pela mecânica celestial.

Os cenários comentados pelo autor envolvem personagens bíblicos, do Antigo ao Novo Testamento, enquanto os personagens principais da obra são o próprio autor, que realiza uma jornada espiritual pelos três reinos do além-túmulo, e Virgílio, seu guia e mentor nessa empreitada.

Dante e Virgílio chegam ao vestíbulo do Inferno (que tem nove círculos). Entre o vestíbulo e o primeiro círculo está o rio Aqueronte, no qual se encontra Caronte, barqueiro que faz a travessia das almas.

Embora hesitante para conduzir os dois personagens, por serem aparentemente pesados, o barqueiro é convencido por Virgílio a realizar a empreitada, pois se trata de uma ordem celestial. Fazem a travessia e chegam ao Limbo, local onde as almas que não puderam escolher a Cristo, mas escolheram a virtude, vivem a vida que imaginaram ter após a morte.

“Na mitologia clássica, o Limbo não fica no Inferno, mas suspenso entre o Céu e o mundo dos mortos. Na poesia de Dante, não se tem uma noção precisa de como se chegar lá, pois o poeta desmaia no ante-inferno e quando acorda já está no Limbo, o primeiro círculo infernal”.

  Dante se reporta aos atritos que teve com o papa Bonifácio VIII, de quem se tornara opositor, tendo colocado o sumo pontífice no Inferno antes mesmo de sua morte.

A amargura do exílio está registrada em várias parte de a Divina Comédia, como no Canto-III do Inferno, referindo-se ao papa Celestino-V: “Depois disso reconheci uma sombra daquele que, por covardia, perpetrou a grande renúncia”.

Com base na tradução de José Pedro Xavier Pinheiro, editora Principis, edição 2020, transcrevemos a seguir as introduções às chegadas dos personagens ao Inferno, Purgatório e ao Paraiso.

O INFERNO

“Chegam os poetas à porta do Inferno, na qual estão escritas terríveis palavras. Entram e no vestíbulo encontram as almas dos ignavos, que não foram fieis a Deus nem rebeldes. Seguindo o caminho, chegam ao Aqueronte, onde está o barqueiro infernal, Caronte, que passa as almas dos danados à outra margem, para o suplício. Treme a terra, lampeja uma luz, e Dante cai sem sentidos!”. A seguir, os quatro primeiros versos do Canto-III:

Para mim se vai das dores à moradia,

Por mim se vai ao padecer eterno,

 Por mim se vai à gente condenada.

 

Moveu Justiça o Autor meu sempiterno,

Formado fui por divinal possança,

Sabedoria suma e amor supremo.

 

No existir, ser nenhum a mim se avança,

Não sendo eterno, e eu eternal perduro:

Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança!

 

Estas palavras, em letreiro escuro,

Eu vi, por cima de uma porta escrito.

“Seu sentido”, disse eu, “Mestre me é duro”.

 

O PURGATÓRIO

Ao sair do Inferno, Dante respira novamente o ar puro e vê fulgentíssimas estrelas. Encontra-se na ilha do Purgatório. O guardião da ilha, Catão Uticense, pergunta aos dois poetas qual é o motivo da sua jornada. Logo após, ele os instrui relativamente ao que devem fazer, antes de iniciar a subida do monte”.

A seguir, os quatro primeiros cantos sobre o Purgatório:

 

Do engenho meu a barca as velas Solta

Para correr agora em mar jucundo,

E ao despiedoso pego a popa volta.

 

Aquele reino cantarei segundo,

Onde pela alma a dita é merecida

De ir ao céu livre do pecado imundo.

 

Ressurja ora a poesia amortecida,

Ó Santas Musas, a quem sou votado;

Unir ao canto meu seja servida.

 

Calíope o som alto e sublimado,

Que às Pegas esperar não permitira

Lhes fosse o atrevimento perdoado.

 

 

O PARAISO

“Invocando Apolo, o Poeta canta como do Paraíso Terrestre ele e Beatriz se alçaram ao Céu, atravessando a esfera do fogo. Beatriz explica-lhe como possa vencer o próprio peso e subir. É atraído pelo invencível amor.

“Seguindo as teorias de Ptolomeu, Dante põe a terra imóvel no centro do Universo e, ao redor dela, em órbitas concêntricas, os céus da Lua, de Mercúrio, de Venus, do Sol, de Marte, de Júpiter, de Saturno, a oitava esfera, que é a das estrelas fixas, a nona, ou primeiro móvel, e finalmente o Empíreo, que é imóvel. Transportado pela força que faz rodar os céus e pela luz sempre crescente de Beatriz, Dante eleva-se de um céu para outro, e em cada um deles aparecem-lhe os espíritos bem-aventurados que, quando vivos, possuíam a virtude própria do respectivo planeta”.

Os três primeiros cantos sobre o Paraíso:

 

À glória de quem tudo, aos seus acenos,

Move, o mundo penetra e resplandece,

Em umas partes mais em outras menos.

 

No céu onde sua luz mais aparece,

Portentos vi que referir, tornando,

Não sabe ou pode quem à terra desce;

 

Pois, ao excelso desejo se acercado,

A mente humana se aprofunda tanto

Que a memória se esvai, lembrar tentando.

 

(Manoel Neto Teixeira, jornalista e escritor, autor, dentre outras obras, da série MULTIVISÃO (já no oitavo volume), é membro da Academia de Letras de Garanhuns). E-mail: polysneto@yahoo.com.br


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