sexta-feira, 5 de março de 2021

O Jantar - João Marques


 







Pilar, dia normal de uma quarta-feira, lê, faz arrumação de algumas coisas espalhadas, e senta-se. Como de costume, estando cansado, prefere a poltrona do canto da sala. Esperar o jantar... sentar e pensar.

     Que vida, que tempo! A tarde amarelando, e, pela janela aberta, algum sol de despedida. Relaxa e pensa. Que vida, que tempo! Os pés nos chinelos, os braços e as mãos soltos, liberados dos compromissos com o restante do corpo. Ambiente de tranquilidade. O tempo, como gosta; o ar bom, como respira. O jantar... Afra ia aparecer na sala, e anunciar o jantar. Pilar, percebia que comer era-lhe a coisa mais agradável; mais que outras do não ter o que fazer. No fim da vida, essa conquista, comer. Que lhe viesse o sono, o passar da vida, o médico, os remédios, mas comer... comer e comer bem.

     Pensava... A lembrança não acaba mais. Recorda de um tempo de trabalho e infortúnio. Ter de chegar às 5 da manhã, e só largar o serviço ao desaparecimento do sol de uma vista longe, a qual ele se prendia sempre, pela desolação do desconhecido. O dia todo no serviço de uma madeireira. Foi isso até um tempo favorável, quando passou de serralheiro a cortador de fatias de bolo. Fazendo e vendendo bolo, melhorou de vida. Chegou à grande diferença do que antes era, transformando-se em proprietário de uma indústria de alimentos.  Passa tudo, e acaba vivendo bem do que conseguiu com muito trabalho.

     O jantar. Uma pizza, preparada por sua cozinheira, com queijo de Minas, e uns ingredientes que havia usado nos seus bolos. Essa mistura era segredo, guardava sempre em segredo, como a arma do negócio. Sentia o cheiro, dava-lhe água na boca, e esperava mais instantes. Comer sem pressa, saboreando cada bocado. E se sentir, depois, saciado do alimento, cômodo, absorto como é a borboleta no jardim da vida.

     E logo, surge à porta da sala Afra, e diz

– Aí, chegou  um amigo seu, Irineu.

     Mandou entrar. Era raro o amigo aparecer. Tinham sido amigos no tempo do infortúnio. Irineu conhecia muito Pilar, o apelido e a sua vida de luta. Como sempre, começava perguntando pela família. Pilar quase não tinha mais parentes. Um irmão, Anselmo, e uns primos de longe. Vivia só, como podia aproveitar, viúvo, as últimas mesas fartas. O irmão, diferente e desventurado, só causava problemas, quando aparecia. Irineu lamentou, e disse que o irmão andava metido em encrencas. Vida arriscada... e a conversa se mantém sobre família, as obrigações com os parentes próximos. Os desníveis sociais, os incômodos.

     A interrupção foi de uns 30 minutos, até que o amigo, agradecendo o convite imediato de ficar e jantar, despediu-se e saiu. Pilar suspira, e se dirige à mesa. Já estava servido o jantar. Senta-se, tudo pronto, comida quente e apetitosa. Como bom cortador, mal corta o primeiro pedaço de pizza, surge outra vez à porta Afra. Pilar vê o seu rosto, que traz expressão de acontecimento ruim... E, quase em choro, diz:

– Pilar, seu irmão!...

     Pilar ergue-se e nem espera por mais notícia. Vai afastando-se da mesa e do jantar, como que empurrado pelo destino persistente.


Exame - José Alexandre Saraiva


 






O primeiro desafio para renovar a carteira de motorista não foi nenhuma surpresa. Mera sucessão de atos típicos da burocracia de Pindorama.

 

 Primeiro, tive de explicar na página do Detran que eu não era um robô. Eu era eu mesmo. Vencida essa fase, para obter a guia de pagamento do serviço, foi preciso criar a senha “x”,  em seguida decorar a senha “y” e só assim habilitar-me a receber pelo Messenger a senha “z”. Após algumas tentativas, enfim, a guia com o código de barras. Procurei quitá-la normalmente, como qualquer boleto, utilizando o aplicativo do meu banco, mas descobri que só poderia fazê-lo em uma das três instituições bancárias amigas do Detran. Nem mesmo na lotérica foi possível quitar a obrigação compulsória. Refiz o estressante passeio na página do Detran e imprimi nova guia. Ato contínuo, recorri a uma filha que opera com um daqueles bancos autorizados. Taxa quitada, voltei ao site do Detran com o número do protocolo que me foi enviado para agendar o exame. Mais uma vez, tive de convencer o órgão de trânsito de que realmente eu era eu.

 

 Enfim, o dia D (por coincidência o mais letal da pandemia), no indigesto horário das 13h37. Não bastando isso, numa clínica localizada nos confins do Parolin, distante 15 quilômetros da minha casa. Meia hora após deixar as digitais na maquininha da recepcionista, a médica, uma senhora magérrima e já em provecta idade, dá um passo para fora do consultório e chama meu nome.  Entramos no consultório praticamente emparelhados, ela um pouco à frente. Já ia sentando quando a doutora me pede para fechar a porta. Justifico que tenho evitado tocar em superfícies, incluindo maçanetas, por isso, usaria o cotovelo. Dei aquela cotovelada na porta e me reaproximei da mesa da médica.

 

 “Sente-se. O senhor é José...? O formulário que o senhor preencheu na recepção é o mesmo que preencheu na ficha eletrônica do Detran? Seu documento de identidade com foto, por favor!” Depois de checar alguma coisa no computador, ordena: “Agora vá ali atrás e sente-se...” Fui lá. Ao me aproximar de uma maca, a doutora avisa que não é na maca. ”É na cadeira!” Sentei na cadeira. “Quais são as letras que o senhor está enxergando na primeira linha deste painel atrás de mim? Procure não errar, seu José, se errar será reprovado”. Prossegue: “ Agora, encubra o olho direito com a mão direita e me diga quais são as letras da quarta fileira do painel”. Tentei explicar que enxergo melhor com os dois olhos bem abertos. Ela interrompeu minha fala. “Dispenso suas explicações. Aqui quem pergunta e quem explica sou eu! Quais as letras que o senhor vê com o olho esquerdo na quarta fileira do painel, seu José?  Não, não! Eu falei quarta fileira. Diga as letras da quarta fileira, seu José... Vamos passar para o outro olho. Cubra o olho esquerdo com a mão esquerda! Diga as letras da terceira fileira que o senhor vê com o olho direito”. Etc, etc. “Levante-se e sente aqui novamente. Vou medir a sua pressão... Preciso medir outra vez... agora só mais uma vez...  Descanse a mão na mesa... Assim não, estique o braço na mesa... Solte a mão na mesa... Vou falar pela terceira vez... Solte a mão e estique o braço na mesa... Agora, fique em pé... Fixe os olhos no visor do aparelho ao lado e vá dizendo as cores das luzes quando eu perguntar... Qual a que está mais  perto? Não erre! E agora, que cor é esta? E esta? Cuidado, não encoste os olhos na superfície para evitar eventual contato com o novo Coronavirus... Vamos concluir o exame, seu José... Sente-se... Pegue e aperte com força o dinamômetro.” Como? “Pegue e aperte com força este dinamômetro”. Peguei o dinamômetro – uma espécie de alicate de tratorista, e o apertei com a força de Maciste. A médica olhou na tela do computador, olhou pra lá e pra cá, olhou pra cima, olhou pra baixo, digitou não sei o quê com seus dedos ricamente anelados, engoliu um seco insondável, fitou-me friamente e sentenciou: “Exame concluído. Seu José, o senhor foi aprovado. Pode retirar-se. Não precisa fechar a porta!”


quarta-feira, 3 de março de 2021

A Menina que Redescobriu o Sorriso! Aline Morena

 







Havia uma adolescente que se achava persistente, mas era, na verdade, muito teimosa!

Logo que começou a andar, ela insistia em colocar o dedo na tomada e sua mãe dizia: “_Vai doer”! 

Mas ela não ouvia! Ia lá e levava o choque...voltava sempre chorando porque teimava em experimentar o que todes já sabiam fazer mal! Assim foi em quase tudo até os seus 13 anos de idade! 

Até que um dia...aconteceu algo que fez ela aprender a lição de uma vez por todas!

Sem querer, correndo pra atravessar a rua antes dos carros que vinham, ela chutou o próprio pé e machucou o dedinho...tal era a vontade de fazer tudo rapidamente, sem prestar muita atenção nas possíveis consequências.

Então ela, finalmente, disse para si mesma: “_Chega de me machucar!”

Aí começou a pensar em todas as coisas que lhe faziam bem! E decidiu prestar mais atenção em si própria! 

E percebeu também, ouvindo a sua mãe, sua vozinha interior e o que tinha acontecido na sua vida até então, que ser feliz não era uma questão de teimosia, nem de pressa, mas de entrega! De entregar-se a tudo o que lhe fazia bem e ela nem se dava conta! Prestando mais atenção no caminho! Como ela era feliz e não sabia! Como ela era teimosa e precipitada, sem necessidade! 

Assim, a partir dos 13 anos de idade, ela passou a escolher melhor seus próprios passos...seguindo só por onde sentia que havia aquela energia que lhe fazia bem, que lhe fazia sorrir! Com muito menos pressa e com muito mais atenção e entrega! 

E a menina já crescida, além de sorrir muito mais, passou a chorar muito também! Mas de alegria, por encontrar muito mais flores e frutos pelo caminho! Sim! Ela ainda se machuca, de vez em quando, mas muito menos do que antes...

Autora: Aline Morena

Dedicado à minha mãe, Erenita Folador! 

Obs. Pra quem achar que a menina da estória sou eu, nunca levei choque na tomada quando criança, né mãe? Também nunca chutei meu próprio pé atravessando a rua...

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Sessenta Anos De Arte No Reino Da Cantoria

 







O Sítio Paraíba estará lançando o seu Canal no YouTube.

O lançamento será com a apresentação da LIVE DE OLIVEIRA DE PANELAS - 60 Anos de Arte no Reino da Cantoria.

A transmissão, ao vivo, direto do Sítio Paraíba será no DOMINGO, 28 DE FEVEREIRO, às 17:00h.

SOLICITAMOS QUE ACESSEM O LINK ABAIXO, INSCREVA-SE NO CANAL E ATIVE AS NOTIFICAÇÕES.

https://www.youtube.com/watch?v=i3GOM1cpqBY&feature=youtu.be


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

A LIBÉLULA - Leóstenes

 

 

Num  espelho d´água de um lago azul

Entre brancas flores ela não destoa

Como uma gaivota dos mares do sul

Elegantemente ela pousa e voa

 

Suave e doce graciosa e bela

Segura de si vai voando à toa

Naquele instante ela se revela

Musa inspiradora que o poeta loa.

 

É lírico poético é encantador

O lago azul o sol se pondo a flor

A solidão a calma o entardecer

,

A luz difusa a reluzir nas asas

Da libélula a estradinhas as casas

As últimas cores e o anoitecer

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Carnavaleando a COVID-19! - Aline Morena


 






Nós brasileiros somos um povo conhecido por fazer piada de nossas tragédias, transformá-las em samba, driblarmos nossas dificuldades com alegria e um pouquinho de álcool...e vem chegando o Carnaval de 2021 sem que possamos abraçar-nos uns aos outros, como costumam ser os Carnavais de grande parte dos brasileiros por aqui...não só dos brasileiros e não só por aqui...o Carnaval ganhou o mundo é há muitos nascidos em outros países que adoram cair na folia! Folia do frevo, do samba, do maracatu, do axé, etc! E agora, José? Após ouvir a notícia de milhares de Reais

do dinheiro público investido para comprar picanha e cerveja apenas para um pequeno escalão da sociedade, realmente, comprova-se que o gosto pela festa regada a cerveja e carne é de muita gente mesmo! Mas, pra mim, certas piadas com nossas tragédias, como a própria música que estão usando para divulgar a vacina produzida em parceria com o Butantan, como, inclusive, fazer piadas sobre bêbados, estão longe de fazer graça! Estão cada vez mais longe de me animar! E tenho uma certa pena de quem se anima com isso porque a realidade está dura demais para rir e incentivar o que só tem o objetivo de nos afundar ainda mais...

Mas, há muitas formas de se alegrar sem apelação! Há muitas formas de ser feliz mesmo diante destas tragédias todas e contribuir! E cair na folia sem precisar prejudicar ninguém! E, inclusive, ajudando alguém! Que este Carnaval seja o Carnaval da partilha, dentro das possibilidades de cada um! Seja o Carnaval da generosidade! Seja o Carnaval de brincar e pular ou simplesmente curtir cada um do jeito que gostar mais, desde que esse jeito não te prejudique no dia seguinte! Que possamos fazer escolhas melhores é o que eu mais desejo a todes para que possamos Carnavalear a COVID e todos os falsos salvadores da Pátria!

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

IMORTAIS TARCÍSIO PEREIRA E A LIVRO-7

 




Abaixo, homenagem dos escritores Manoel Neto, João Marques e Edson Mendes. 


 De Manoel Neto                                             

Convivemos com Tarcísio, nos corredores da Livro-Sete, ele nos atendendo sempre com sorriso e fidalguia. Era capaz de discorrer com maestria sobre o conteúdo da obra de autores ali expostos, fossem nacionais ou de outras línguas. Mais do que um vendedor, ser polido e amigo de todos. Horário largo abrangendo os três turnos, muita gente fazia "plantão" nos espaços da Livro Sete, sempre acolhedor, onde éramos recebidos com um abraço sincero e amigo de Tarcísio. Ele parecia absorver a espiritualidade que emanava de cada autor ali exposto. Criatura e criador, eis como se fundiam Tarcísio/Livro-Sete. Ares da autêntica cultura nordestina. Era comum ouvirmos o vozeirão de Tarcísio que parecia mais ser um daqueles que se projetavam nas emissoras de rádio e tv  "a antiga". Partiram mas deixaram a lembrança e saudade de um tempo que insiste em permanecer nas mentes e corações dos assíduos frequentadores da sempre LivroSete.


De João Marques

Homenagem a Tarcísio Pereira

 

Tarcísio da Livro Sete

tanto sete que se conte

e à soma não compete

resultado que aponte

os livros que vendeu...

toda bondade que fez

a vida que promoveu  

com a sua sensatez

e se agora morreu

não é isso tanto mal

seu sete não pereceu

Tarcísio é imortal.


De Edson Mendes

Adeus, Tarcísio

Uma vez eu disse a Tarcísio: Caso me encontrem no Bar Real igualmente o velho Maria, nem precisa me acordar, estarei dormindo – profundamente, doucement. Faço questão apenas de duas coisas: que o enterro seja às 3 da tarde, e que minha playlist toque ininterruptamente... Peço ainda que, na saída do féretro, haja uma parada no Pirata, para um discurso de saudade. Com os pés já no outro mundo, quero ver com estes olhos, que a terra vai comer, algumas mulheres que amei – damas, ladies, costureiras, prostitutas, senhoras – sei que são apenas ectoplasma, mas ectoplasma também tem alma, não é?

Ele riu muito quando acrescentei: “Seu Tarcísio Pereira será o mestre de cerimônias. O Rei do Brasil, em se falando de Livrarias, pagará as pacas caras, e as baratas também, algumas biritas e lauto farnel, com o meu cartão Credisete 17.0101-26451.07, vencido em janeiro/89 – mas isso é lá com ele!”

E aí ontem resolve Tarcísio se adiantar e seguir viagem antes de nós, que o amamos fraternalmente, visceralmente, como se ama um pai, um filho, um irmão - um homem digno, generoso, amoroso, carinhoso, empreendedor, idealista, íntegro, honesto, que, na selva escura de nossos dias manteve puros e limpos e claros seus pensamentos, palavras e obras.

Na cobertura inicial de certa mídia, bisonha e pífia, barrigas narizes e gavetas roubaram-lhe espaço, e aos poucos segundos de cenho franzido logo se sucederam os sorrisos e esgares das próximas notícias. Mas sabemos, oh! como sabemos, o quanto essas fugazes efemérides são apenas fugazes e efêmeras. Tarcísio Pereira ficará para sempre no panteão dos grandes, e em todo o país eu sei que a esta hora sua morte nos comove e seu exemplo, que moveu a tantos, continuará luzindo no céu dos inesquecíveis, na lembrança fiel dos amigos, dos autores, dos leitores , dos livreiros, da arte, da cultura - nas orelhas, nas folhas, nas páginas, nos colofões dos livros que tanto amou e aos quais dedicou toda sua vida.

Dona Cecita e Júlia me disseram que ele estava melhor, e aí eu falei: “Dê um beijo nele, viu? Vamos comemorar. E esperar o dia certo para tomar vacina com cerveja - ou guaraná!” No dia 22 de dezembro, mandei pra ele esta mensagenzinha de Natal, mas ele não viu. Mando agora de novo, outra vez...

“canção de natal

enquanto você se lembrar de mim

eu viverei

enquanto eu me lembrar de você

seremos felizes

a vida é um jardim

e os amores são flores

todas as sementes

germinam

como disse frida:

eu pinto flores para que elas não morram”

 

Adeus, Tarcísio. Até outro dia.

Edson Mendes

Recife, 22.12.2020

Recife, 26.01.2021