segunda-feira, 19 de abril de 2021

O Viajante - Dr. Ulisses Pereira


 






Um viajante solitário perdeu-se numa noite, enquanto cruzava parte do deserto americano. Pra piorar, caiu de sua montaria, que assustara-se com um outro animal. Ele ficou ali desacordado. Ao voltar a si, não sentiu frio. Estava numa cabana. Passou a mão na testa e sentiu um unguento perfumado sobre a ferida recente. Sentou-se devagar. Viu, junto ao fogo, um velho pele-vermelha, cujos olhos e semblante eram amistosos. Ele contou calmamente como encontrara o viajante, oferecendo uma bebida quente e forte. Depois sentaram à porta e o viajante viu as cicatrizes do velho índio. Não resistiu e perguntou: “como, vivendo tão isolado, sobreviveu a tantos ferimentos”? Ele sorriu timidamente. Fitou o céu estrelado e falou: “meu novo amigo, eu vivo só! Sou um dos últimos do meu povo. Nasci livre e morrerei livre. O instinto me faz sobreviver. Eu mesmo suturo minhas feridas e estanco meus sangramentos. No dia que um deles for incurável, eu morrerei livre. Meu espírito irá iluminar a noite, será mais uma das tantas estrelas”.

Despediram-se pela manhã e o viajante nunca mais viu o pele-vermelha.

Vieram outras luas e anos. O homem tornou-se um grande médico e lia no seu escritório. A porta abriu-se e entrou seu filho de cinco anos, de face rosada e olhos claros. Olhou o quadro atrás da mesa do seu pai. Nele, com detalhes de uma fotografia, a tela reproduzia um velho índio iluminado pela lua. Era majestosa a cena, a dignidade e a sabedoria que emanavam do quadro. Papai, disse o garoto, “o senhor conta a história dele”? O homem disse que sim. Nunca esquecera. O filho acompanhou com o dedo a cicatriz na sua testa.

Assim, esta história chegou aqui.


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