quarta-feira, 26 de maio de 2021

O Corredor - Ulisses Pereira - Médico


 







Este não é um conto feliz. O corredor estava deserto. Quem conhece ou simplesmente já viu, sabe como é em um hospital, tem uma hora que tudo cessa. Há pouco movimento. Mesmo assim, ouve-se sons. Um carrinho é arrastado, uma ampola de vidro é quebrada, um bip insiste em disparar, uma cadeira arranha o chão, um motor é ligado... e uma janela que não foi fechada, pode bater.

 

Pela porta entreaberta de um quarto na penumbra, um homem está sobre um leito, dormindo. Próximo, numa poltrona, um moço vela o sono do idoso e contempla sua face. O doente, no leito, é só uma sombra do que fora. Seus cabelos ralos quase não existem mais, pelo tempo e pela ação das sucessivas sessões de quimioterapia. O rosto magro emoldura os grandes olhos cerrados. As olheiras são acentuadas. Atualmente, ele mal enxerga. Está barbeado. Este é um cuidado do jovem ao lado. As sobrancelhas levemente arqueadas e a testa vincada pelo tempo e pelas dores. Emagrecido e descorado. Nos braços, os hematomas violáceos das punções e a púrpura senil. As mãos são longas e aristocráticas. E ele as amava. Escrevia muito. Dissera que aprendeu a ler e escrever aos três anos de idade. A mão direita livre, sob um pequeno travesseiro, é segurada pelo homem jovem, um tipo alto, queimado de sol. Forte, tinha uma barba densa, aparada. O cabelo escuro e os olhos castanhos completavam a bonita figura. Velava o sono débil do idoso, que pedira pra não ser reanimado. Ele compreendia bem o significado da expressão "fora do protocolo de tratamento". Não queria para si as medidas fúteis. Na madrugada, abriu os olhos e disse baixinho: “não verei mais o próximo dia, sinto muito frio”. O moço acendeu a luz da cabeceira. Puxou a manta aveludada. Checou as meias e os pés. Abaixou a cabeça e beijou seu amigo na face e na fronte. Ele tocou a sua barba.  O cuidador se debruçou, com muito zelo, sobre o ancião e o abraçou. Lembrou dos tantos anos, nos quais o amigo e hoje também, seu mestre, fizera o mesmo. Ele o salvara de si mesmo, tantas vezes. Quanta coisa ele devia àquele homem! Então, sentiu a mão cair ao lado do corpo e o seu valente coração parar. Sem poder fazer nada, trouxe as mãos dele até o seu peito. Beijou-as, seguidamente, bem como sua face. As lágrimas vieram quentes.  O quarto estava mais frio. Ele ficou ali debruçado sobre o maior de seus poucos amigos. O bipe agora disparava no monitor, quebrando o silêncio. As enfermeiras entraram rápido, o carrinho foi arrastado, um médico de óculos grossos entrou, um segurança se pôs a porta. Tiraram o jovem dali. Ele, então, se viu olhando pela janela esquecida aberta, onde os primeiros raios de sol se levantavam no nascente. Os passarinhos acordavam nas árvores do pátio e cantavam. Soprava uma brisa perfumada de um pé de jasmim em flor. Ele respirou fundo e seguiu caminhando pelo corredor, finalmente compreendera o verdadeiro significado de amizade e amor. Ele os tivera, até aquele dia.

PS. Eu avisei, que era um conto triste!

 

Garanhuns-PE, madrugada de 24 de maio de 2021.


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