segunda-feira, 19 de abril de 2021

O Viajante - Dr. Ulisses Pereira


 






Um viajante solitário perdeu-se numa noite, enquanto cruzava parte do deserto americano. Pra piorar, caiu de sua montaria, que assustara-se com um outro animal. Ele ficou ali desacordado. Ao voltar a si, não sentiu frio. Estava numa cabana. Passou a mão na testa e sentiu um unguento perfumado sobre a ferida recente. Sentou-se devagar. Viu, junto ao fogo, um velho pele-vermelha, cujos olhos e semblante eram amistosos. Ele contou calmamente como encontrara o viajante, oferecendo uma bebida quente e forte. Depois sentaram à porta e o viajante viu as cicatrizes do velho índio. Não resistiu e perguntou: “como, vivendo tão isolado, sobreviveu a tantos ferimentos”? Ele sorriu timidamente. Fitou o céu estrelado e falou: “meu novo amigo, eu vivo só! Sou um dos últimos do meu povo. Nasci livre e morrerei livre. O instinto me faz sobreviver. Eu mesmo suturo minhas feridas e estanco meus sangramentos. No dia que um deles for incurável, eu morrerei livre. Meu espírito irá iluminar a noite, será mais uma das tantas estrelas”.

Despediram-se pela manhã e o viajante nunca mais viu o pele-vermelha.

Vieram outras luas e anos. O homem tornou-se um grande médico e lia no seu escritório. A porta abriu-se e entrou seu filho de cinco anos, de face rosada e olhos claros. Olhou o quadro atrás da mesa do seu pai. Nele, com detalhes de uma fotografia, a tela reproduzia um velho índio iluminado pela lua. Era majestosa a cena, a dignidade e a sabedoria que emanavam do quadro. Papai, disse o garoto, “o senhor conta a história dele”? O homem disse que sim. Nunca esquecera. O filho acompanhou com o dedo a cicatriz na sua testa.

Assim, esta história chegou aqui.


sexta-feira, 16 de abril de 2021

A Noite, com Nostradamus - João Marques

 






    

      Noite, e Nostrad recolhido em um canto da sala. Sozinho, sentado numa cadeira antiga, com guardas de sustentação por todo o canto. Cenho mostrando amargura, e um ar de convencimento. Escuta os sons habituais de casa. Pouca gente. Não se importa. A desolação silenciosa, de sala à parte, fechada. Ninguém de casa entra ou passa na sala, era costume. O isolamento de sempre o deixa à vontade. Pensa, e pensa mais dessa vez. De cá, do seu tronco, observa os livros da estante. Que significavam mais? E se lembra que não havia terminado a leitura de Guerra e Paz... quantas vezes, havia tentado, em vão. Que importa, agora? Noite, tenebrosa noite. Os livros sem tempo. E sem tempo os livros da noite.

     O dia passado tinha sido normal. Não muito, considerando-se o encontro com um pastor protestante. Anuncia-lhe, o religioso, que o fim do mundo está próximo. Cita a Bíblia, as previsões antigas, o livro de João, e as perdições do mundo atual. O fim está próximo, aleluia! Nostrad escuta, atento. E, por solidariedade, diz que os sinais já não estão apenas no céu... Outra passagem digna de nota no dia foi a observação, que fez, de um político conhecido abraçando todo o mundo que ia encontrando. Próximas as eleições, o homem anda de mangas de camisa pela calçada movimentada. Para, abre os braços incontinente, e, sorrindo, cumprimenta todos, abraça, fala... Uma moça, sorridente também, entrega panfletos, onde está, também, retrato em mangas de camisa. Só alegria. Manhã e tarde, nada mais notório que pudesse quebrar a rotina. Apenas isso, esses exageros.

     A noite, Nostrad está noite, e, sentado e só, vai tendo pouco a pouco agravamento do que é. E é anoitecimento profundo. Nem saber do horário, do andamento do tempo, nada lhe interessa mais. E nem respirar a vida, a existência ali, com quadros de paisagem nas paredes, crianças brincando, de tonalidade azul. Mais tarde, percebe que foram todos dormir. Poucos. Permanece, sólido, em sua postura, dobrado na vida. Apaga a luz, alcançando o interruptor perto, sem se levantar. É todo ficada, e as horas passam... até escutar sons conhecidos, da madrugada. Sons por sons, não quer escutar mais. E desvia a atenção para o pensamento de que todos dormem. Longe, tudo está muito longe. Sente frêmitos, estacionado na cadeira. O mundo, pensa, não sabem, está estacionado na noite. Durmam! solta a exclamação. Sente fria a língua. Admite, hermético como nunca, que o mundo, agora, não é mais que a cadeira. E lhe parece prazeroso estar sentado ainda sobre a cadeira. Sobre a noite e a cadeira. Espera mais, terrível espera.

     Dormentemente, bole os sapatos. Estava ainda de sapatos, como chegara da rua. Tem um impulso à toa de querer tocar o interruptor. Mas não. A escuridão da noite está definida... Espera. Entra em divagações. Vida, vá ao diabo! Aposentadoria, vá ao diabo! Amigos, parentes, mortos, vão ao diabo! Há no espaço um estalido da cadeira, escuta, recompõe-se do desespero na escuridão da sala, decide-se pela calma, contemplar a noite que lhe resta ali. Levanta os olhos e divisa pequena claridade entrando pela greta da janela próxima. Espera, senta mais na cadeira o que não estivesse prostrado. Deixa cair os braços para os lados. A claridade vem, e a noite começa a ser debelada, ali, na sala, a sua vista. Incrível... Ah, é o sol, o sol de novo. E se levanta meio leso e entrevado. E, ao se erguer, a cadeira range, amanhecida e livre.


E TUDO COMEÇOU COM CLEÓPATRA - Gonzaga Mattos


 





     Às vezes, numa daquelas de não fazer nada, ligo a televisão e vou mudando de canal. Ora paro diante de uma cena inusitada, ora sou atraído para as recomendações dadas por alguém do tipo “faça o que falo, mas não faça o que faço”. Assim, numa displicência de quem não tem compromisso com o tempo, vou tocando a vida para não ser tocado dela. Sou homem do meu tempo e, sobretudo, dono de meu tempo. E, como o olho do dono é que engorda o gado, sigo dando sabores à minha vida: tangendo-a ao meu gosto, sem sair dos limites a que ela me impõe. Resumindo: danço conforme a música!

     Nesse rame-rame toco o barco e aprecio a paisagem. Num desses momentos televisivos vi uma das meninas do BBB, diante dos espelhos, se modificando. Exato: se modificando. Sou do tipo que isso era conhecido por make up. Hoje, pelo resultado final, entendo como camuflagem.

     Outra estratégia que está em moda é o uso de um aplicativo. Este é dez vezes melhor do que Antisardina, o segredo da beleza feminina. Já tem feirante pensando em aplicá-lo em maracujás de gaveta para transformá-lo com ares de pele de pêssego. Com o aplicativo “aplicado” chovem comentários do tipo “como você está linda”, “o tempo não passa para você” – forma bandida de enquadrar a amiga na turma da terceira idade.

     Diante disso pensei numa boa piada: a senhora, daquelas bem caridosas e atentas às questões sociais, teve um beribéri e foi parar no hospital. O peso da idade facilitou o aparente inesperado. Examinam aqui, examinam ali. E nada de sinal de vida. Nesses momentos de confabulações e cochichos em volta da indigitada, lá foi ela, de moto próprio, ter uma conversinha antes com São Pedro, que lhe encaminharia para onde sua vida pregressa lhe credenciava. Nesse bate-papo com dito porteiro do Céu, a recém-chegada alegou que ainda tinha muita coisa a resolver, tantos carentes necessitando de seu olhar piedoso e por aí adiante. Pediu que a medida fosse reconsiderada dado o seu excelente currículo à frente de obras meritórias. Lembrou-se daqueles que dependiam de suas beneficências.

As lágrimas e tantos serviços prestados às boas causas conseguiram comover o bom velhinho. Afinal, ninguém é santo por acaso.

- Tá bom! Você vai sair desse estado de quem já foi pro beleléu e logo, logo, você terá alta e vai para casa. Faça o que você tem que fazer e daqui cinco anos virá de mala e cuia.

Na UTI foi uma correria. Todos surpresos quando ela abriu os olhos e esboçou um sorriso. Teve até balões coloridos em sua saída do hospital.

Dias depois lá estava visitando todas as irmandades e grupos de chás onde estabeleciam planos de ajuda ao próximo. Foi recebida com confetes e serpentinas. Regalos para quem tem conta polpuda e coração mole.

     Ah, se eles soubessem o que passava pela cabecinha da “filantropa”, como era nominada pelo colunista social da cidade. Ao sair do hospital passou pela Caixa e viu saldo e aplicações. Chegou à casa e começou a fazer cálculos. Tanto para a Santa Casa, tanto para o Lar das Meninas e Guarda Mirim e assim foi marcando os valores na coluna apropriada. Na outra página estabeleceu os valores para uma volta ao mundo em transatlânticos. Por último, porém mais importante, a página com letras garrafais: MEU NOVO LEIAUTE. E aí colocou a maior parte do dinheiro aplicado. Não sem antes exclamar: - Nestes cinco anos minhas aplicações serão de botox e silicone!!!

Recauchutada e toda faceira com novos seios, bumbum revigorado e empinado, nariz aquilino e olhos de gata, confiante nas palavras de São Pedro, que lhe davam cinco anos a mais de vida, ajeitou os ombros, estufou o peito, levantou o queixo e saiu às ruas para o famoso “que vier e der”. Uma dezena de metros adiante foi atropelada, sem retorno. Subiu direto.

Com tanta gritaria e reclamações, na recepção daquele ambiente de paz celestial, foi imediatamente atendida:

- Mas, São Pedro! O senhor não disse que me daria mais cinco anos de vida e já estou aqui de volta?

Surpreso, o porteiro do Céu a olhou de alto a baixo e, pálido, exclamou: “Meeeniiina, não te reconheci!”

NR: Minha homenagem às caras lavadas.


quarta-feira, 31 de março de 2021

TELA DE WHATSAPP (recebido) de Gonzaga Mattos - 328 anos da cidade de Curitiba

 

Curitiba comemorou ontem seus 328 anos. Foi também dia de comemorar os 14 anos dessa homenagem que me foi prestada pela Câmara Municipal de Curitiba:



Resposta de João de Marques:

Embora tarde, Parabéns. As homenagens são se apagam.


(de Madalena Ferrante Pizzatto)

RETRATO DE CURITIBA

 

Minha amada, gelada, cinza e nublada,

de inverno com o céu azul translúcido,

outros muitos bruscamente escurecidos.

Um sol tímido algumas vezes brilha aqui.

 

“Daí você já sabe” aqui tem leiTE quenTE. 

É a queridinha do vampiro e polaquinha, 

do Poty, da Elena Kolody e Leminski.

da “vina”, do“penal” do “piá” e Au Au.

Cidade Sorriso da Rua da Flores

dos teatros, dos Natais e musicais.

 

No domingo tem Tangua, Tingui e no Barigui.

Porque é linda e Santa a Felicidade,

Eu te envolvo com meu abraço 

Curitiba, é muito bom viver aqui !


De João Marques:

Penso, Adélia, como é bom  Curitiba... viver esse aqui, muito bom viver aqui, onde a existência são esses monumentos de se ver nos ares e nas praças, Rua das Flores de ir, passagem de ficar, sem espinho, e sem outra rua no meio, é só de pisar pela calçada estendida entre os pontos cardeais; Curitiba, a poesia te declara, e fica  nos olhos dos curitibanos... dos poetas das névoas,  e veste o frio e sobe os pinheirais. Retrato de Curitiba, geografia da alma dessa cidade, e parabéns a Madalena, que de Pizzatto nunca vi Ferrante mais leve.



BBB NOS DÁ A SOLUÇÃO - Gonzaga Mattos


 





À medida que o tempo passa ou a qualquer desarranjo na condução da política, aumenta o número daqueles que dizem “eu votei nele para que o outro não ganhasse”. Afastam assim o carimbo da testa com a inscrição “Você é o culpado”.

E isso não é de agora. Desde que me conheço por gente, desde aquele tempo em que percorria as seções eleitorais para pegar cédulas, esparramadas pelo chão, para brincar de eleições. Nada mudou. Sempre fica no ar o desapontamento do eleitor diante dos erros ou trapalhadas de seu representante.

Hoje resolvi contrariar aqueles que se dizem indiferentes ao BBB... assim como os que se travestem de progressistas e socialistas para serem vistos como intelectuais. No Jornalismo e nas Artes é prática recorrente.

Pois bem... ouvi dizer que o Big Brother é o microcosmo do mundo exterior. Exceto Covid, ali tem de tudo: hipocrisia, traição, falsidade, conversa fiada e, às vezes, demonstrações de amizade sincera. Representa o oásis nesse deserto de boas notícias da televisão. Você recebe uma carga imensa de informações sobre a Covid e seus efeitos, com UTIs superlotadas, velórios sem cortejo e muito “dá cá o meu” na hora de pleitear ajudas aos cofres públicos. Daí entra na programação o BBB e você não ouve falar uma vírgula sobre a pandemia. Minutos de desafogo!

Vejo, portanto, o BBB. E tenho “aprendido” muito. Vi, por exemplo, uma menina bonitinha perguntar, numa prova, qual era o significado de Ambição. Simples ignorância, metalinguagem, metáfora ou qualquer outra coisa do gênero? Será que, ao demonstrar tal desconhecimento, ela não estava passando mensagem ao telespectador sobre a tênue linha que separa a virtude do pecado? Adão e Eva não destruíram o Paraíso em razão da ambição? Em contrapartida, crescer, prosperar, progredir não têm, em si, muito de necessária ambição?

A lição maior, contudo, é para mim, dirigida aos que definem a regra do processo eleitoral. Da casa do BBB saem os condenados pelos eleitores, o público telespectador. Não seria melhor em nossas eleições votarmos em quem deve sair do pleito. Mais votos – representando a condenação pelo passado político do candidato – fora! Ao final, o menos votado seria consagrado vencedor.

Assim, seria a legítima vitória do Menos Ruim. Ou seja, acabava com essa história de ser enganado por promessas, planos oníricos ou ares de quem possa a vir ser bom.

Combinava perfeitamente com o quadro político brasileiro. E as manchetes pós-pleito seriam verdadeiras e de acordo com a realidade política: “Fulano venceu hoje a eleição como o Menos Ruim”, para a alegria do macrocosmo nacional.

GERALDO FREIRE O COMUNICADOR DA MAIORIA - Manoel Neto Teixeira

 








     É por demais abrangente e expressivo o título do livro do e sobre o radialista Geraldo Freire: “O que eu disse e o que me disseram”. A obra, em segunda edição, 486 páginas, Companhia Editora de Pernambuco-CEP, 2018, coautoria de Eugênio Jerônimo, colaboração de Gildson Oliveira e Daniel Bueno. Xico Sá, jornalista e escritor, assina o “Breve prefácio de um admirador de longa data”, o qual salienta, entre outras tiradas: “Noves fora a brincadeira, que figura tampa de Cruch, que arretado, que radialista da gota serena, da moléstia dos cachorros, da febre do rato, para citar apenas algumas expressões populares que tratam da grandeza e do superlativo da nossa gente nordestina. E viva a fala do povo, a linguagem da “poeira”, algo tão exaltado e defendido por esse gigante da comunicação do país”

No primeiro capítulo, sob o título “A improvável vida de Geraldo Freire, Eugênio Jerônimo discorre sobre as origens e contexto familiar do radialista, cujos pais – Lauro Gomes dos Santos e Odília Freire dos Santos -, as irmãs Maria e Adalgiza, migram do sertão cearense, fins da década de 40 do século XX, em busca de melhores condições de vida no município de Pesqueira, agreste de Pernambuco. A criança Geraldo Freire, com apenas cinco anos de idade, fica órfão de mãe e daí enfrentaria toda sorte de dificuldades e desafios, materiais e psicoemocionais. Recebe as primeiras lições na escola rural de Fundão de Dentro, com a profa. Sebastiana, de quem chama a atenção pela rapidez com que assimila o aprendizado das primeiras letras e os deveres prescritos: “Em apenas uma semana já lia a cartilha de frente para trás e de trás para a frente”. Tinha oito anos. “As pessoas identificavam nele um talento superior”, confessa a profa.

 A primeira odisseia do menino GF estava próxima: aos nove anos, arquiteta aquela que seria decisiva na sua vida: foge da casa do pai e madrasta, no sítio Canela de Ema, zona rural de Pesqueira, embarca no trem em Pesqueira rumo ao Recife, à procura da casa da tia, Ciló, que já havia recebido suas irmãs após a morte de sua mãe. A residência ficava no bairro de Água Fria. Mas, qual não o susto da tia ao ouvir alguém bater na sua porta em plena madrugada. Embora reticente, abre a porta e se depara com o menino sobrinho GF. Que susto e que alegria. O acolhimento imediato, com os afagos quase que maternais.

Irrequieto o menino GF busca logo e encontra trabalho, apesar da pouca idade, em pequenas mercearias e lojas estabelecimentos comerciais. À época, a Justiça do Trabalho fazia “vistas grossa” permitindo a mão de obra de menores. Depois das primeiras experiências, bate por último na porta da Agência de Propaganda do Sr. Hermes de Melo, no centro do Recife, consegue emprego e onde ensaia as primeiras incursões no mundo da publicidade. A paródia “La Bamba” foi a sua primeira produção.

O publicitário Hermes de Melo mantinha um programa na rádio Capibaribe divulgando as notícias das atividades sindicais no Recife. Onde realizada também entrevistas com lideranças do setor. O menino GF tinha a incumbência de conduzir o gravador acessórios para o Sr. Hermes realizar as entrevistas. Surge daí o seu primeiro encanto com os bastidores do rádio, as entrevistas, locução e produção de textos.

Certo dia, GF chega aos estúdios da Capibaribe levando o gravador de fita de rolo na cabeça para a entrevista que o Sr. Hermes faria, naquela tarde, com o interventor do Sindicato, um capitão de mar e guerra (já em pleno regime militar, pós 64). A entrevista estava marcada para as duas da tarde. O tempo foi passando e nada de o Sr. Hermes chegar, o que veio a acontecer somente às 18 horas. Foi logo perguntando como iam as coisas, na sede do Sindicato dos Tecelões, e qual não o susto ao ouvir do menino Geraldo Freire: “Eu fiz a entrevista, senhor Hermes”. “O que, menino? Voce fez a entrevista? Deve ter ficado uma merda”.

Depois do susto, a surpresa agradável: Hermes liga o gravador, escuta a entrevista, gosta e logo aprova o gesto aparentemente precipitado do menino.  Começa daí a mudar o panorama na vida de GF, tinha 14 anos: recebe a incumbência de continuar auxiliando o Sr. Hermes na realização das entrevistas, substituindo-o quando necessário. Recebe a credencial de “repórter amador de rádio”. Um novo e definitivo desenho começa na vida do adolescente GF. Surgem as primeiras oportunidades para mostrar suas características e modus operandi.

Foi reprovado em dois testes para locutor nas rádios Capibaribe e Continental, por revelar alguma dificuldade na pronúncia de palavras em inglês e francês.  Mas não desistiu. JÁ estava fascinado com os bastidores da radiodifusão. Era sua praia. Já tendo demonstrado jeito para colher entrevistas, como “repórter amador”, nos ambientes sindicais e esportivos. É convidado pelo famoso apresentador Reinaldo Filho para o substituir numas passagens de Natal e Ano Novo, com a incumbência de anunciar apenas a “hora certa”. Os caminhos começavam a se abrir.

Seu primeiro emprego como locutor foi no Sistema Globo (Rádio Repórter), era dezembro de 1968. Depois, rádio Capibaribe, onde cria um laço com os motoristas de táxi, obtendo 90% de audiência da categoria. Atuou em todas as emissoras de rádio do Recife, inclusive na Rádio Olinda, mantendo em todos os programas a sua marca, o jeito próprio de fazer e dizer, entremeando com frases de efeito, “linguagem rasgada, com uma semântica erótica, marcada de palavrões, que deve ser explicada em conjunto com as outras habilidades do comunicador”, salienta Eugênio Jerônimo.

Em 1971, deixa o Sistema Globo e vai para o Sistema Jornal do Commercio, onde atuou como repórter de pista nas coberturas nos estádios de futebol. Aí, aprontou muitas, dentro e fora do gramado. Integrou a equipe de Darcy Lago, na TV Jornal, com o cognome de “O repórter pra frente”. Na Rádio Jornal apresentava o programa “A musicalíssima é uma parada”, líder de audiência no horário. Mesmo assim, é demitido pela direção da empresa e é recebido de braços abertos na Rádio Olinda, pelas mãos do diretor de programação, Roberto Queiroz. Muda o nome do programa da Jornal, agora “A disparada sucesso”, conquistando a liderança de audiência no horário. Fazia ainda um comentário sobre futebol o “Bate-bola”

Volta para a Rádio Repórter, 1973, onde cria, juntamente com o radialista Jota Ferreira, um quadro com o nome de “O tribunal da cana”, com a participação de quatro moradores de rua que “davam plantão” nas rampas do Hospital da Restauração, por Jota Ferreira transitava nas coberturas diuturnamente. Esses personagens reais eram Piroquinha, Dadi, Marreco e Exu Cultura. A conversa com os quatro eram puxadas e alimentadas por Geraldo Freire, novamente líder de audiência no horário, início das manhãs.

Outro quadro também de grande audiência é concebido pela mesma dupla, Jota Ferreira e Geraldo Freire, foi “A perna cabeluda”. Uma ficção que terminou se espalhando qual “realidade” nos quatro cantos do Recife, dando muita dor de cabeça nas delegacias de polícia onde os dois radialistas eram sempre intimados a dar “explicações”.

 

                        O QUE EU DISSE E O QUE ME DISSERAM

Geraldo Freire abre o seu capítulo comentando e justificando o seu linguajar, personalíssimo, pois não se tem notícia de estilo semelhante na radiodifusão brasileira. A conversa inicial com o seu patrão, diretor-presidente do Sistema de Comunicação Jornal do Commercio, Sr. João Carlos Paes Mendonça, sua curiosidade com o linguajar de GF. Este  lembrou uma conversa que manteve com um ouvinte dos seus programas que insistiu em saber algo sobre o seu patrão. A conversa foi por telefone e, entre uma colocação e outra, para encurtar o papo, GF disse: “Eu te digo mais: ele tem muita sorte, pois em tudo que toca faz sucesso. Senti que o cara ficou mais calmo e dei a pancada final: “Eu sou doido que Paes Mendonça me coma, porque eu vou ficar cagando ouro e dou pra tu um par de alianças. O camarada deu uma gargalhada e eu aproveitei para desligar o telefone e continuar trabalhando”.

Quanto ao seu linguajar, recheado de palavrões, GF registra, entre outros, os seguintes: o tirinete; pra caralho; nem fudendo; aquele filho pentelhado de 17 anos; porra nenhuma; puta que pariu; vai tomar no olho do cu; fodeu de vez; foda-se; nem fudendo”.

A segunda parte do livro compõe-se ainda dos seguintes capítulos: começando o tirinete; gente importante; a bola que eu vi rolar; na cozinha do rádio; a cultura do povo; pesquisas, estudo e palpites; para os curiosos; depoimento do diretor do Ibop no Recife.   

 No capítulo “gente importante”, registra tiradas ontológicas com um leque de celebridades de todas áreas do conhecimento, da política, da música e das artes em geral, que passaram e continuam passando pelo seu programa, líder de audiência na Rádio Jornal, onde continua militando há mais de 30 anos.

(Manoel Neto Teixeira, jornalista e professor, membro, dentre outras, da Academia Pernambucana de Letras Jurídicas, autor de mais de uma dezena de livros). E-mail: polysneto@yahoo.com.br.




Se só te resta uma semana de vida... William Santiago







     Acabei de rever um vídeo da geriatra Ana Cláudia Quintana Arantes e não consegui deixar de pensar em escrever este texto. Aliás, antes disso, penso no Youtube, Google e mídias sociais. Temos hoje, refeita, a incinerada biblioteca de Alexandria com todo o conhecimento disponível ao alcance da mão. E é na web, você não carrega peso nem pega alergia com papel velho. Claro que temos uma imensa quantidade de lixo e de inutilidades no ambiente virtual, mas garimpando se encontram tesouros. Esse vídeo é um deles.

     A narradora, com voz suave, nos fala da morte e nos propõe um exercício ao final: escreva os seus 5 maiores problemas de hoje. Depois pense que você vai morrer na próxima semana. Volte a pensar nos problemas e vai ver que não são tão grandes assim.

    Isto posto, recordo o dia em que meu filho Iúri me ligou para contar que o amigo João Batista de Freitas, o Jonba, tinha apenas três meses de vida. Poeta, contador de piadas, escritor, advogado, técnico de laboratório, grande cozinheiro, grande anfitrião, o que o Jonba não era? Pois ele recebeu a notícia de que estava com fibrose pulmonar e só tinha aquele limitado crédito existencial. Teve até mais tempo do que o proposto no exercício da geriatra.

     Recebi a notícia e, acovardado, relutei bastante até tomar coragem e viajar de Brasília a Pitangui para compartilhar talvez os últimos dias de uma pessoa que conhecia desde criança. Jonba também saiu de nossa cidade natal, trabalhou por muitos anos em Trombetas, PA, e fomos nos encontrar de novo em Pitangui, na metade dos anos 80. Daí, quase sempre no quintal de sua casa, no caminho da bica da Gameleira, continuamos uma produção literária e musical, compartilhada pelo também saudoso Reinaldo Pereira de Souza, o Rohr, nosso parceiro, músico excepcional.

     Estive com Jonba todas as manhãs, durante uns 10 dias. Não toquei no assunto principal, a morte anunciada. Quando ele beirava o tema, eu não dava liga. Buscava outras pautas. Procurei incentivá-lo a colocar na web os seus escritos, principalmente os “causos” reunidos sob o nome de “Beira de Balcão” e também poemas. A meu pedido, criou sua página no Recanto das Letras e postou apenas dois poemas, que podem ser acessados pelo singelo nome do autor: Jonba. O tempo foi curto para isso, sua produção é imensa.

     Estava em pleno processo de despedida quando o visitei. Contratou um motorista para levá-lo pela cidade aos lugares queridos. Não sei e nem perguntei, talvez agora pergunte aos familiares como ele se comportou nesses últimos dias. Com a respiração cada vez mais prejudicada, passou a usar o oxigénio portátil a maior parte do tempo, inclusive nos últimos encontros musicais em sua casa ou na casa do irmão José, onde o sobrinho Fábio Freitas já se anunciava como um herdeiro do tio.

     No 1º de setembro, seu aniversário, já estava no hospital. Liguei a pretexto da data e, consternado, ouvi sua voz fraquinha e respiração angustiada. Ainda fiz uma brincadeira:

     - Que situação, Baez, passar o aniversário no hospital, hein? -  Pura falta do que falar, mas ele respondeu qualquer coisa ininteligível. Foi a última vez que ouvi sua voz.

      Partindo dos parâmetros da dra. Ana Cláudia, até que ele aproveitou bem o tempo que lhe deram para meditar e despedir-se. Penso nisso sempre e agora sigo essa diretriz para redimensionar meus problemas. Estou na mesma gangorra que a maioria da Humanidade, especialmente nesses tempos terríveis da Nova Peste: quando assolado por problemas, penso na semana que me resta e tiro tudo de letra. E vou seguindo. 

Eis o link do vídeo citado:

https://www.youtube.com/watch?v=d5aKY_ozmBc